Capitão
O Jorge Costa nunca foi um jogador que me enchesse as medidas. Nunca gostei do estilo de futebol que ele praticava. Muito tranqueiro, um tanto ou quanto (assim para o muito) lento, etc, etc. Mas reconheço-lhe algumas virtudes.
Quando um dia perguntaram ao Hodgson (isto foi aí em 92 ou 94, era ele na altura treinador da Suiça) que jogador português ele gostaria de ter na sua selecção, ele respondeu sem pestanejar que queria o Oceano. lá explicou que nos momentos críticos, não era bem um jogador virtuoso que ele necessitava, mas sim dum poço de força, de alguém que nunca desistisse, de alguém que estivesse sempre ali até ao fim a puxar pelos seus colegas.
Era essa a principal virtude do Jorge Costa. Essa e o facto de ser portista. Mais, actualmente não vejo ninguém lá no plantel que o possa substituir como símbolo do clube e muito menos como capitão.
Já aqui disse, não gosto das biografias de futebolistas que são editadas em Portugal. Normalmente não contam o que devem e só contam o que podem. A Alexandra Tavares Teles, fez o favor de entrevistar o capitão fazendo-lhe as perguntas que eu queria que alguém lhe tivesse feito há mais tempo.
Está lá tudo: o que é ser portista, o que é ser portuense e até o que é ser do Norte.
E eu gostei tanto dessa entrevista que foi publicada no Correio da Manhã, que decidi colocá-la aqui na integra.
Jorge Paulo, agora que já não jogas mais, obrigado! A gente não te esquece.
– Qual tem a melhor dupla de centrais: FC Porto, Sporting ou Benfica?
– A grande diferença é feita com um jogador chamado Pepe. Por isso, acho que é a do FC Porto.
– Quem é então o favorito nos próximos jogos Sporting-FC Porto [amanhã] e FC Porto-Benfica [28 de Outubro]?
– O FC Porto. Apesar de serem sempre jogos complicados a equipa é a que está mais habituada a esta pressão e a que melhor lida com estes jogos. Tem, portanto, uma vantagem.
– Foi campeão pela primeira vez na época 1992/93, tinha acabado de chegar ao FC Porto. Essa equipa era melhor ou pior do que a que foi campeã em 2005/2006, quando já não estava no clube?
– Não julgo que a equipa de Co Adriaanse fosse pior. A diferença é outra. Em 92/93 tínhamos uma equipa à Porto, em 2005/06 tínhamos um bom grupo de atletas contratados a outros clubes.
– Quando chegou em 92 teve noção que podia tornar-se um dos símbolos do clube?
– Esse foi o ano em que concretizei o meu sonho. Jaime Magalhães, João Pinto, Vítor Baía eram ídolos para mim. Estava ali para aprender.
– Os defesas centrais são provavelmente os jogadores que mais dependem do parceiro. A dupla com Fernando Couto foi a mais feliz da sua carreira?
– Quando cheguei ao FC Porto, o Fernando e o Aloísio eram a dupla titular. Ao contrário do que se possa pensar, não fiz muitos jogos com o Fernando. Fomos sim, e por muitos anos, a dupla de centrais da Selecção. Agora, é verdade que mal cheguei ao FC Porto criei com ele uma relação de grande amizade. Fora do campo éramos inseparáveis e dentro de campo bastava um olhar para nos percebermos. Infelizmente, jogámos durante pouco tempo porque ele foi para Itália, o que me deixou satisfeito por ser o sonho dele mas também triste pelo afastamento físico.
- E pode dizer-se que foi com Ricardo Carvalho que teve o relacionamento mais distante?
- Não, porque não é verdade. Na minha carreira com Ricardo Carvalho, o FC Porto ganhou uma Taça UEFA e foi campeão europeu, títulos que não conquistei com Fernando Couto, Aloísio, Jorge Andrade ou Pedro Emanuel.
- Mas foi com Fernando Couto que viveu no FC Porto a fase de encantamento...
- Concordo.
- E, mais tarde, já com Aloísio?
- Sempre tive com o Aloísio uma relação muito boa. Foi sempre muito educado, correcto, preocupado com todos. Era impossível não gostar dele. Foi na altura em que passei a ser titular e posso dizer que ele me ajudou muito.
- Com Jorge Andrade já era capitão. Era a sua vez de ensinar.
- Nessa altura fiz com o Jorge o que os outros tinham feito comigo. Já me competia transmitir a mística.
- E como é que isso se faz?
- A primeira lição que recebi no FC Porto foi a lição do respeito. Aprendi a observar o grupo, aprendi a necessidade de conhecer cada uma das pessoas e a ser educado. Transmitir aos que chegam a mística do FC Porto é, também, transmitir-lhes a mística da cidade. Sempre que chegava um estrangeiro eu próprio fazia questão de lhe mostrar o melhor do Porto. E ainda hoje há jogadores que me telefonam com saudades de comer um bom cabrito.
- Hoje não é assim?
- Não há comparação. O FC Porto não era o nosso emprego, era o nosso trabalho. A grande diferença é que fazíamos mais do que aquilo a que estávamos obrigados. Trabalhava-se por gosto e habituávamos os mais novos à ideia de que ganhar todos os títulos era natural e a nossa obrigação. Nem nós próprios nem nenhum portista esperava menos de nós. Essa era a mística do ‘dragão’.
- Como chegou a capitão em 96?
- Foi o ano da despedida do João Pinto. Nessa altura havia números fixos e eu era o 22. Um dia, estava de férias, telefona-me o treinador [António Oliveira] e pergunta-me se queria ser o número 2, o número que era do João Pinto, o anterior capitão. Claro que queria! Foi uma enorme honra e um dia muito feliz.
- Jardel teria sido o que foi se tivesse começado no Sporting ou no Benfica?
- Não sei. Ele era muito novo. Penso que fora do FC Porto Jardel sempre correu mais do que devia. Ele é do tipo de jogadores que para ser eficaz não se pode mexer muito. Nos treinos, quando lhe fazia marcação, pedia-lhe para se mexer um bocado mais para ver se eu próprio também me conseguia mexer alguma coisa.
- E qual foi o jogador mais talentoso que viu no FC Porto?
- Deco, sem dúvida.
- Conta-se que o Mozer, ex-jogador do Benfica, avisava os adversários de que corriam riscos físicos caso simulassem penáltis ou lhe fizessem faltas. Fazia o mesmo?
- Fazia, mas de outra maneira. Durante o jogo falava com o adversário que estava mais perto de mim, perguntava pela família, se estava tudo bem com eles, tudo para o desconcentrar. “Então e os miúdos?” Fiz isso muitas vezes ao Nuno Gomes, por exemplo.
- Tinha alguma embirração particular?
- Com o Simão, apesar de nada ter contra ele como pessoa. Por estar sempre no chão.
- Quem lhe deu o nome ‘Bicho’?
- O Fernando [Couto]. Mas é um termo simpático que vem da minha maneira de jogar, de encarar o futebol, de ser agressivo. E pegou.
- Agressivo e violento
- Às vezes. Tenho noção que em determinadas alturas excedi-me mas nunca de forma premeditada. Sempre pedi desculpa. Fora dos relvados sou muito calmo, tranquilo, mas em campo só pensava em vencer.
- Recorda-se de um caso de agressividade que não repetisse?
- Um com o João Vieira Pinto. Foi num jogo em Alvalade em que o agarrei pelo pescoço. Mas ele não levou a mal. Conheço-o desde os 14 anos. Mas, naquelas alturas, nem que fosse o meu pai que estivesse à minha frente.
- Teve lesões graves. A carreira chegou a estar em risco?
- Passei momentos terríveis e a minha carreira só não acabou devido ao apoio da minha família e à competência de Rodolfo Moura.
- Que avançados temeu mais?
- Joguei frente a grandes jogadores: Henry, o Romário dos tempos do Barcelona e muitos mais. Em Portugal havia uns que me tiravam mais o sono que outros. O Nuno Gomes, por exemplo ou o Artur, do Boavista, que nos marcava sempre um golo, exigiam cuidados acrescidos.
- Dirigia-se aos seus colegas antes dos jogos?
- Muitas vezes. No tempo do Mourinho, fi-lo muitas vezes. Dizem-se muitas asneiras. Aquelas conversas só passariam na televisão a horas adiantadas e com bolinha.
- Sempre que o FC Porto perdia um campeonato, preferia a vitória do Sporting ou a do Benfica?
- De nenhum. Quando o FC Porto não ganhava não via TV nem lia jornais.
- Nunca foi convidado pelos dois rivais?
- Não.
- Teria aceite?
- Não.
- Como foi o dia em que Octávio Machado lhe tirou a braçadeira?
- Não digo nada sobre esse assunto.
- Na altura saiu do FC Porto, empurrado. Foi a primeira traição?
- Foi a pior fase da minha vida profissional porque não queria sair. Tinha até recusado convites de bons clubes onde iria receber três a quatro vezes mais. Depois, tive que deixar a minha cidade, o que me custou muito.
- Esperava regressar um dia?
- O Charlton queria accionar a opção de compra. É nessa altura que me telefona Mourinho. Convida-me a regressar e garante-me que iria ser apresentado como qualquer outro jogador.
- Mourinho foi o treinador da sua carreira?
- Mais do que pelos resultados, pela amizade. Quando um técnico nos diz – ou porque estamos lesionados ou castigados – para irmos com a família passear durante dois ou três dias, só podemos ter uma resposta: morrer por ele em campo. Mas houve outros também muito importantes: Couceiro, Autuori, Joaquim Teixeira, Inácio.
- Não fala de Octávio. Fora ele, Co Adriaanse foi o pior treinador que encontrou?
- Adriaanse é muito bom treinador. Como pessoa é certamente diferente dos portugueses.
- Merecia ter tido uma homenagem nessa altura?
- A melhor homenagem que me podem fazer é reconhecerem toda a minha dedicação ao FC Porto. Posso andar na rua de cabeça erguida.
- Como foi a sua relação com Pinto da Costa?
- Foi sempre muito próxima. Como capitão tive de contactar muitas vezes com ele. Sempre o admirei e respeitei muito e sei que é recíproco.
- Nos dois momentos difíceis – com Octávio e com Adriaanse – esperava mais de Pinto da Costa?
- Quer numa altura quer noutra saí porque queria jogar futebol.
- É verdade que no FC Porto só entram e saem os jogadores que o presidente quer?
- É verdade. O treinador tem total liberdade mas quem faz as compras e as vendas é o presidente. A última palavra é do responsável máximo.
- Então Pinto da Costa podia ter impedido a sua saída?
- Podia ter travado. Mas das duas vezes que saí [Charlton e S. Liège] foi porque quis e porque entendi que era melhor para mim e para o clube.
- Gostava de suceder a Pinto da Costa?
- Aproveito para esclarecer a questão. Não tenho o sonho de ser presidente do FC Porto. O FC Porto está muito bem entregue. É evidente que como portista e querendo continuar ligado ao futebol com a ambição que sempre demonstrei como jogador, se, um dia, o FC Porto precisar de mim não lhe direi não. Estarei sempre disponível para ajudar o clube. Neste momento, vou tirar o curso de treinador, vou tirar um outro de gestão, vou enriquecer-me. Posso ser treinador o resto da vida, como posso enveredar pela carreira directiva, que, julgo tem mais a ver comigo.
- Fernando Gomes seria um bom sucessor de Pinto da Costa?
- Admiro-o muito e estamos a falar de um dos símbolos do clube. É muito competente e se um dia tiver um papel no FC Porto tenho a certeza que o desempenhará de forma digna. Mas não quero entrar em guerras.
- Agora que fechou a carreira há-de ter episódios divertidos para contar...
- Tenho muitos mas a grande maioria é incontável, primeiro porque se identificam imediatamente os intervenientes e depois porque são coisas de balneário. Mas há um ou outro que posso contar. Nas selecções jovens, por exemplo, sempre que estagiávamos no estrangeiro tínhamos matéria para rir à conta dos colegas que não falavam inglês. Lembro-me de duas situações. Numa, um colega chama o empregado e pede a sobremesa: “Ei friend, dá-me a sobremaise.” Noutra, dissemos a um para pedir Coca-Cola para todos. E vai ele, para o empregado: “Ei, friend, Coca-Cola forever [Ei, amigo, Coca-Cola para sempre].” Era só rir.
- E no FC Porto?
- Na preparação de um jogo da taça UEFA, com o Mourinho, estávamos a ver um vídeo da equipa turca do Denizlispor, com as luzes apagadas, e todos reparámos que estava em campo um jogador muito feio mas com uma cara familiar. Quando acendemos as luzes ficámos todos a olhar para o Pedro Emanuel. O que gozámos com ele. Até em campo, quando olhávamos para o turco desatávamos a rir. A partir daí o Pedro passou a ser conhecido por turco.
UM BICHO FEITO DE SUOR E LÁGRIMAS (Opinião do jornalista António Tadeia)
Azar? Azar é não correr.” A frase, atribuída a Jorge Costa, espelha bem aquilo que era a personalidade competitiva do histórico capitão do FC Porto. Na história do clube e do futebol português não fica o homem revoltado que, em Setembro de 2001, num insignificante jogo em casa com o V. Setúbal, atirou a braçadeira para o colega que ia substitui-lo ainda antes do intervalo, motivando o primeiro de dois exílios, mas sim o rosto expressivo e pleno de espírito ganhador que incitava os companheiros à revolta sempre que os resultados eram menos bons. Um rosto ao mesmo tempo furioso e compenetrado, que os grandes planos televisivos tiveram umas quantas vezes a fortuna de transportar para casa de todos nós.
Desde tenra idade que Jorge Costa impressionava pela compleição física. Quem o visse treinar, num dos relvados secundários do Estádio Nacional, ao lado dos colegas que com ele jogaram nas selecções jovens, não podia deixar de reparar nele. Jorge Costa já tinha em menino a morfologia compacta (1,88m por 86kg) que fez dele uma aposta segura de quase todos os treinadores desde que, saído dos juniores, foi emprestado pelo FC Porto ao Penafiel. Um ano no Marítimo – durante o qual marcou o primeiro golo a favor do FC Porto, um autogolo numa vitória portista, por 3-1, nas Antas – deixou-o pronto para o regresso e para uma carreira que, ultrapassadas três lesões gravíssimas nos ligamentos dos joelhos e episódios rocambolescos, como a cabeçada que levou de George Weah, atingiu o ponto mais alto em Gelsenkirschen, doze anos depois, num longo abraço a José Mourinho. Alenitchev acabara de fazer o 3-0 ao Mónaco e o resultado já não deixava espaço para dúvidas de que a Liga dos Campeões ia mesmo regressar às vitrinas do clube. “Obrigado! És o maior!”, disse ali ao treinador que dois anos antes o fizera regressar de Inglaterra.
Com o mesmo número 2 na camisola, Jorge Costa emulou nesse dia João Pinto, o ‘capitão’ que o antecedeu e que, em Viena, ficara para a história com a tampa da taça na cabeça. Antes, já o imitara como guardião da mística do clube e como aglutinador de títulos. Aos nove campeonatos nacionais do velho capitão, Jorge Costa respondeu com oito (e seriam nove, se Adriaanse assim tivesse querido), cinco dos quais consecutivos; às quatro Taças de Portugal, ripostou com cinco. Ficou a perder nas Supertaças (8-5), mas compensou igualando as vitórias na Taça dos Campeões e na Taça Intercontinental, e ganhando uma Taça UEFA em vez de uma Supertaça Europeia. Dois currículos muito iguais, de dois homens tão diferentes, que encontraram um ponto de contacto na forma semelhante de encarar a responsabilidade: valorizando mais o suor e as lágrimas do que a estética, colocando sempre a entrega à frente do que teriam a receber.
E, no entanto, Jorge Costa é um tipo urbano, afável, brincalhão até. Na história particular da selecção nacional ficam os duelos intensos com Rui Costa, amigo de todas as horas, frente ao computador e aos jogos de estratégia futebolística. Não se conhece um registo de quem ganhou e perdeu mais, mas com esta formação teórica somada à prática adquirida nos relvados, não será nada estranho que o ‘Bicho’ – ‘petit nom’ criado por Fernando Couto, para simbolizar o espírito competitivo do colega – esteja de volta em breve, para funções onde os joelhos tão sacrificados tenham menos importância do que o que lhe vai na alma e na mente.
Alexandra Tavares-Teles
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