sábado, junho 16, 2007

recado a lisboa

a coisa aconteceu há uns bons 15/16 anos. eu tinha terminado um namoro com ela há uns poucos meses. já tinha passado aquele período parvo em que dizemos mal dela e que ela diz mal de mim, já andávamos naquela de dizer bem um do outro só por dizer. lembrou-se então a rapariga de me convidar para irmos beber um caneco ao bairro alto. ui, pensei cá para comigo, tonight's the night, yehhh, yehhhh, yehhhh!

estou eu em casa quando batem à porta os meus dois amiguinhos de então:
- c-a-r-a-l-h-o! cheira aqui a putas, porra! pá, entornaste o perfume?
- não, vou sair com a ana.
- com quem? não vais nada. era o que mais faltava.
- vou vou, vamos mamar uns canecos e tal...
- uma ova, tu estás a ver é se ainda lhe consegues dar uns beijos e uns amassos.
- também.
- então não vais.
- ó pá, deixem-se de merdas.
- ela vem-te cá buscar?
- iá, vem!
- então a gente vai convosco! vamos-te abardinar a naite! tá feito! vamos-te abardinar a noite, nha nha nha nha!

e assim lá fomos: eu e ela à frente e eles atrás:
- ó ana, a gente só veio para te proteger. o gajo disse que te queria comer outra vez.
- ai que parvos, deixem-se disso.
- não acreditas? então pergunta-lhe.

estava assim o ambiente quando às tantas, já em procissão pelas capelinhas, passamos por uma tasca com uns guitarristas e uns fadistas populares. a rodinha do costume: há um que se chega à frente, pede licença, pronuncia as habituais palavras "sem desprimor pelos presentes, eu quero dedicar este faduncho a uma pessoa que já não está presente..." e cá vai alho!

ora a ana, além de ser um valente borracho, tinha vozeirão. chegou-se à frente e disse que queria cantar. mas o núcleo duro da casa de pasto não mostrava intenções de a deixar cantar. paneleirices digo eu. dor de corno, rezam as crónicas:
- ó pá, deixem-me lá cantar.
- mas a menina quer cantar o quê?
- sei lá, um qualquer. o mouraria, por exemplo.
- mas porque carga de água é que a menina quer cantar um fado?
- olhem, porque os meus amigos fazem hoje anos e eu queria presenteá-los com este fado.
- e qual deles é que faz anos?
- fazem todos, fazem os três! é só por isso é que eu quero cantar.

e pronto, apesar de ninguém ter acreditado na coisa, lá a deixaram cantar, não sem antes ter havido um pequeno azedume por parte dum dos guitarristas que interrompeu a cantiga logo após o "aiiiiiii, moouoooouuuouurariiii......" inicial, abanando a cabeça para um lado e para o outro com um ar negativo:
- pára tudo!
- maaaau! diz o outro guitarrista.
silêncio na sala.
- então não se vê que a miúda deve ser acompanhada em ré?
- é em dó, pá. dó! retorquia o guitarrista, enquanto molhava os beiços no seu traçadinho.
- é ré!
- mau!
- vamos seguir em ré, que é como eu digo.

seguiu em ré.
terminou com palmas e uns discretos falsos parabéns para mim e para os meus companheiros.

é então que surge aquele que para mim foi o momento da noite. um velhote, baixinho, com um definitivos ao canto da boca, mão esquerda no bolso das calças, avisa a assistência que o próximo fado era dedicado à menina fadista que tinha terminado a sua actuação. segreda umas palavras aos guitarristas e arranca decidido com uma sentida versão do recado a lisboa do villaret.

conta a lenda que em meados dos anos cinquenta, numa noite de são joão, estava o villaret em digressão pelo rio de janeiro, quando uma saudade, daquelas que só nós, lisboetas, podemos sentir, se alapou no seu peito e, num ápice, decide escrever este poema.

e eu que sempre me lembro de gostar muuuuuito deste fado, adorei de morte aquela performance. foi uma coisa em grande, até porque o velhote baixinho, quando chegava a altura de cantar "vai dizer adeus à graça", virava-se para a porta e, acenando, dizia adeus para a rua. no "vai por mim beijar a estrela", dava um beijinho na palma da mão e mandava-o para a assistência. um mimo.

eu que até nem gosto muito do joão braga, tenho de admitir que é cantado por ele que a coisa resulta melhor. de caras.

é o meu fado favorito, sobre a minha cidade favorita.

lisboa, querida mãezinha
com o teu xaile traçado
recebe esta carta minha
que te leva o meu recado

que deus te ajude lisboa
a cumprir esta mensagem
de um português que está longe
e que anda sempre em viagem

vai dizer adeus à graça
que é tão bela, que é tão boa
vai por mim beijar a estrela
e abraçar a madragoa

e mesmo que esteja frio
e os barcos fiquem no rio
parados sem navegar
passa por mim no rossio
e leva-lhe o meu olhar

se for noite de s. joão
lá pelas ruas de alfama
acendo o meu coração
no fogo da tua chama

depois levo-o pela cidade
num vaso de manjerico
para matar a saudade
desta saudade em que fico



este video tem o som dessincronizado da imagem e a fadista e engana-se lá numa parte ou outra. mas não isso não interessa nada.

ah, é verdade, é óbvio que nessa noite não houve beijos para ninguém. houve noutras.

tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado! é a vida!

4 comentários:

Anónimo disse...

É por estas e por outras que venho ao teu blog todos os dias.

Um abraço

Anónimo disse...

Pois eu sou estreante, aqui no pipáterra. Mas acho que vou voltar.
Gosto muito deste fado. Ainda noutro dia, o tentava cantar com uma amiga, mas não estávamos lá muito de acordo quanto à melodia do refrão. Afinal acho que ela é que tinha razão.
E este fado fez-me lembrar aqela marcha:

Lisboa cheira aos cafés do Rossio,
E o fado cheira sempre a solidão,
Cheira a castanha assada, se está frio,
Cheira a fruta madura, quando é Verão.
Nos lábios tem o cheiro dum sorriso,
Manjerico tem o cheiro de cantigas,
E os rapazes perdem o juízo
Quando lhes dá o cheiro a raparigas.

Paula Sofia Luz disse...

Também eu gosto muito deste fado. Também para mim há uns 15 anos houve uma noite de santo antónio especial, que relatei no meu blogue por estes dias.
Também gosto de cá vir volta e meia e ler o que escreves bem, com piada, e sobretudo com alma.

Pedro Morgado disse...

A crítica ao S. João de Braga e algumas ideias para o melhorar. Vejam e comentem.