Quando recebe a bola em campo, cada jogador tem uma intenção do que fazer com ela a seguir. Coisas simples, um passe curto e já está, ou coisas diabólicas, fintas, remate impossível e o jogo virado do avesso. Quaresma pertence à segunda casta. Ainda bem. Na equipa, coexistem outros jogadores do primeiro tipo. Ainda bem, também. Uns equilibram os outros. São o garante do ecossistema de uma equipa de futebol. É nos segundos, porém, que mora um dos princípios da genialidade. Fazer algo de grande e de diferente ao mesmo tempo. Aos primeiros, o escudo protector desta ousadia. Gosto muito de falar do lado táctico do jogo, depositada no cofre-forte tacticista da primeira espécie, mas não custa crer que são os segundos que nos fazem levantar extasiados dos nossos lugares.
Quaresma já o fez muitas vezes. E em todas essas vezes podia ter resolvido os lances de forma mais simples. Mas não. Ousou fazer algo grande, mágico, e pintou obras de arte, golos ou centros assombrosos. E foi aplaudido e loucura. Noutras, não engatou o primeiro drible, e perdeu a bola quando tinha um companheiro ao lado bem colocado para receber o passe. E foi assobiado logo a seguir.
É comum no futebol ouvir-se falar no gesto técnico perfeito. É um mito. Porque cada um tem a sua forma de viver ou jogar. Na vida, escrever com a caneta mais ou menos deitada, comer com garfo à direita e a faca à esquerda. No jogo, Correr com os pés para fora, centrar com a parte de fora da direita quando devia ser com a de dentro com a esquerda. Em qualquer destes momentos, há a materialização de uma intenção. Há, no futebol, a técnica ao serviço da táctica. A intenção, primeiro. A acção, depois. O que interessa, depois, é que a segunda corresponda à primeira. A eficácia. É isso que faz a qualidade do passe ou do remate. Não a forma como ele é feito. Quaresma é um bom exemplo desta questão. A biomecânica da técnica expressa na trivela. É comum defini-la como contra-natura ou quase insolente. Centrar com a parte de fora da direita quando devia ser com a de dentro com a esquerda. Complicar o fácil. Na bancada, os adeptos quando vêem os jogadores a tentar a trivela, ficam, primeiro, espantados, e, depois, se sai bem, é genial, se sai mal, assobiam e gritam: “não inventes!”. Já vi também muitos técnicos de formação dizerem o mesmo a miúdos que a tentam fazer. Não faz sentido. Porque cada um constrói a sua biomecânica. Por isso, Quaresma não inventa quando cruza ou remata dessa forma. Ela é, apenas, a forma técnica de tornar mais eficaz a sua intenção táctica. É a sua particular biomecânica. Contrariá-la ou assobia-la é atentar contra a riqueza e a beleza e o do jogo.
Poderão dizer que exagera nesta forma de jogar e quando perde a bola, pode desequilibrar tacticamente a equipa. É aqui que entra a tal noção do ecossistema futebolístico, do equilíbrio ecológico que deve ser uma da equipa. Se Quaresma decide jogos nesses seus rasgos, o treeinador tem de o aprobeitar. Ao mesmo tempo, tem de adaptar a equipa a isso, para o caso de quando ele falhar, perder a bola, ter médios ou laterais atentos para, nas suas costas, activar a transição defensiva. É a tal táctica, com «T» grande. A colectiva.
Quaresma irritou-se com os assobios. Em campo, pelo tom desafiador com que festejou o golo logo a seguir. Fora dele, ao dizer que vai continuar igual. Quanto mais me assobiarem, mais eu vou pegar na bola e resolver jogos. Bela frase. Independentemente de ser um génio ou de um jogador normal, mesmo daqueles que falham os simples passes, não consigo entender o acto de assobiar um jogador durante um jogo de futebol. Dirão que é uma reacção emocional e que há direito a protestar, etc. Sem dúvida. Afinal, também Miguel Ângelo só pintou uma capela sistina. Devia ter pintado uma todos os dias. Não faz sentido. Daqui a quinze/vinte anos, quando o cigano rebelde do Dragão pendurar as botas e recordarmos o jogador que foi, ninguém vai dizer «eu naquele dia assobiei o Quaresma!”. Pelo contrário, vão todos dizer, orgulhosos: “Eu, naquele dia, vi jogar o Quaresma!”
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