a) o q'lim (franquelim) era meu amigo porque era lá da rua. aquele ar de rod stewart misturado com ron wood conferia-lhe, com justiça, um ar de doido varrido que era concertante com a realidade que ele praticava. volta e meia dava-lhe na bolha e passava-se dos carretos. inventava testes de aptidão à coragem dizendo, por exemplo, que quem não conseguisse ficar sobre a ponte ferroviária sobre a sol a chelas durante a passagem do comboio, não era homem nem era nada. noutra vez encontrou uma caracoleta das gigantes, trincou-a e limpou a boca a um pedaço de alcatifa suja que encontrou no chão. depois sugeriu que fossem homem como ele e reptissem o seu gesto. dentre os seus feitos, está também o facto de, em 1984, me ter roubado a paula cristina - que eu tinha roubado, uns 6 dias antes ao nuno - porque chegou à saída do turno da tarde da cesário verde, uns 17 minutos antes de mim.
muito cedo cagou para a escola. muito cedo também foi trabalhar para as obras. a receita mensal que passou a entrar na sua carteira permitiu-lhe frequentar as matinés do cabaret e do acapulco. dizia-me que não gostava do porão da nau porque aquilo era só betas do camões. ao que parece as boas, as que davam linguados iam mesmo era para o acapulco. muito cedo ainda, está fácil de ver, começou a fumar, a ganzar-se... a trabalhar como estafeta químico dos ciganos que se passeavam de celicas nos finais dos anos oitenta. quis o destino que o pó lhe fodesse a alma e não só. é mais um típico caso de... ora, um caso igual a muitos outros, em muitos bairros de tantas cidades.
o q'lim agora é maluco. pronto, é tão simples como isso, é maluco. corre no you tube um video (são mais que um, na realidade) com o quelim a dizer umas parvoíces e a relatar uns actos sexuais a solo. o primeiro instinto é ver até ao fim, sorrindo e gozando com a peça. os que andaram à bulha com ele ou o instigaram a ir buscar dois caixotes de fruta vazios ao albino, para servir de balizas a um estranho jogo que chamámos de pequei, esses, vêm, riem e depois... bom, depois encolhem os ombros e não gostam de ver «o nosso q'lim» a servir de palhaço da sociedade.
b) a liga dos últimos nem sempre foi um programa de humor. antes era um programa de futebol com a bizarria de se ocuparem das equipas que militam nos campeonatos distritais de norte a sul. com o andar da carruagem, e com as entrevistas que foram fazendo, repararam que o mundo real e as declarações do povo afinal tinham tanta ou mais piada que os guiões encomendados às produções fictícias. de ano para ano, colocaram de parte a área competitiva da coisa e passaram a mostrar a parte gozativa do povo.
c) algumas vezes o herman, quase sempre os contemporâneos, nunca deixaram de ter um espacinho nos seus programas em que se assistia a uma suposta entrevista de um dos intervenientes a alguém do povo. o povo, coitado, não sabe no que se está a meter e dá-lhes trela. os espectadores riem. os entrevistadores ganham o seu cachet.
d) um dos filões que aquela publicações ditas jornais, ditas também desportivas - e que alguns designam como jornais afectos ao benfica, outros designam como jornais afectos ao sporting, outros designam como jornais que «sim, senhor, são os poucos que têm coragem de revelar a verdade» - encontraram para vender um bocadinho mais de exemplares, foi contratarem humoristas do benfica e do sporting para escreverem umas crónicas que não são mais que aquilo que ouvíamos, quando éramos miúdos, naquelas alturas em que o nosso clube perdia. algumas pessoas levam-os demasiado a sério e respondem-lhes, não de uma forma humorística mas de uma forma, séria e rezingona. não percebem que estão a usar luvas de boxe para apanhar alfinetes.
lembrei-me destas quatro exemplos para mostrar o quanto eu estou triste com o humor que me rodeia. não, não estou a dizer que eu é que estou bem e os ouros mal. estou apenas a desabafar, a contar que já não consigo suportar este humor que se fundamenta em gozar com as minorias. já não há cu. este ar de marialva, de chá das cinco que as pessoas assumem quando vêem estas oportunidades de fazer rá, rá, rá quando apanham alguém a jeito.
eu não quero nem tenho paciência para filosofar ou reflectir sobre o assunto. é uma questão simplesmente pessoal. lembro-me do herman perguntar ao vaz pinto como é que ele se sentia com as piadas sobre nossa senhora de fátima. respondeu-lhe que uma coisa era ele (herman) estar a gozar com a mãe, outra era assitir a meio mundo gozando com a mãe do herman. a sensação que ele tinha em relação à sua mãe espiritual (maria) era idêntica. lá está, há uma maioria laica, há uma minoria com fé e tunga, se a maioria se ri, a coisa, portanto, funciona.
às vezes, penso no q'lim, falo sobre o q'lim com mais uns quantos que com ele andaram nas linhas de comboio de chelas e rimos com as coisas dele. já nos custa, já nos dói a espinha, quando vemos pessoas que não têm, nem nunca tiveram nada que ver com ele, ali de telemóvel em punho, a filmarem-no naqueles actos alienados. podem-me dizer que ambos riem das coisas dele. sim, aceito. mas há um grupo que no fim - e no início e no meio - não tem carinho algum para com ele ou o passado dele. adivinhem qual é?
se há coisa que espelha a rudeza das pessoas são as piadas sobre desporto. escondidos pela vertente «não leves a sério, isto é tudo uma brincadeira, pá!», aqui há uns anos, pela enésima vez na minha vida, quando ouvi a pergunta «que clube és?» feita pelos pais de uma namorada (quase todos fizeram essa perguntinha, essa é que é essa), perante esta maçada de eu não ter dito que sou do vila chã de sapo ou do gil vicente mas ter assumido ser dum clube que tem a mania de lhes ganhar, logo veio a piadola «eh pá, é que nem voltas a entrar cá em casa. aliás, ficas estacionado no outro passeio.» rá, rá rá, fez a maioria presente. nestas altura, digo eu, teria sido mais fácil, por exemplo estar a ser gozado por ser, por exemplo, preto! ou pronto, paneleiro! é que sempre nos sentimos reconfortados por um ou outro militante do bloco que connosco nos acompanharia numa romagem qualquer em defesa da nossa minoria. mas não, quando toca a desporto, lá vem aquele caralhinho da piadola marialva. no porto goza-se com o pessoal da segunda circular. em lisboa goza-se com o pessoal do porto... e por aí fora. é bonito e dá dinheiro para os humoristas que fazem disso ganha pão.
pode-se dizer que estou a levar isto demasiado a sério. sim, aceito, mas isto não é nenhum dogma, pois não? defendem-se sempre os humoristas com um exemplo valiosíssimo (ui) quando recordam que os judeus, a caminho das câmaras de gás, faziam muitas vezes humor e do mais forte. pronto, com isto têm salvo conduto, têm um santo e senha para assim, poderem cascar onde lhes dê na veneta.
não tenho verdades absolutas, nem uma moral uniforme. sinto é um desconforto fatal quando vejo aquelas supostas entrevistas ao povo, com aquelas respostas que revelam as falhas de literacia e de escolaridade que provoca o riso nas pessoas, com aquele ar de superioridade. na minha aldeia se havia coisa que havia (há) com abundância são cromos. mais, em minha casa há valentes postais (que são o grau superlativo da cromice). mas uma coisa é a gozação que era feita entre portas - da rotunda das olaias para dentro -: uns gozavam outros num dia, no outro eram outros que gozavam uns. havia ali um empate moral. achou-se por bem, agora, fazer-se dinheiro com os de fora a gozarem com os de dentro.
não gosto, sinto-me desconfortável, sinto-me triste porque prefiro o blake edwards, o alexandre machado e a fernanda young, o eric idle (eu não acho que eles gozam com a igreja católica na vida de brian, ok?) e outros afins, ao bruno nogueira, ao unas, às crónicas dos gato fedorento sobre a bola e às coisas da liga dos últimos. e neste parágrafo não pensei sequer em qualidade, refiro-me apenas a estilo.
(não liguem, eu não ando bem. ainda por cima logo eu, um valente dum gozão...)
1 comentário:
Nem me passou pela ideia que o Quelim andasse no Tubo. Deve ser fruto dalguma daquela ingenuidade com que nos divertíamos com ele quando ele, apesar de excêntrico, não tinha ainda perdido a razão.
Diz-se muito mal da censura. A censura são regras (umas vezes boas, outras más); aboli-la em toda a medida é deixar os piores predadores à solta. São esses que tomam conta da cena, não é o Quelim.
Amigo! É a lei do mais forte; há muito tempo que só trabalhamos por aprimorá-la. Chamem-lhe liberdade. Eu digo que são bichos em estado selvagem. O humor é espelho desse recuo civilizacional.
Abraço!
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