cresci rodeado pela pobreza. era assim mesmo.
até ao plano de erradicação de barracas, as traseiras da minha casa tinham vista para a quinta dos embrechados. curiosamente, à excepção dessa mancha na paisagem, é ainda, seguramente, uma das minhas vistas favoritas: os olivais, braço de prata, marvila, xabregas, palmela, alcochete, samouco, barreiro (blhec!) e aquela imensidão do mar da palha.
mas sim, se havia coisa que abundava no meu bairro era a pobreza. e alguns eram, obviamente, meus amigos: andavam na escola comigo, jogavam à bola comigo, compravam o pão na mesma padaria, iam à catequese comigo... vivíamos no mesmo bairro, fazíamos vida de comunidade. o habitual, não é?
não que eu fosse muito rico. nada disso, antes pelo contrário - rico, ah, ah, ah, ah! deixa-me rir - tínhamos as nossas limitações económicas mas nada que me fizesse macaquinhos no sótão.
uma família que nunca teve falta de comida - estamos a falar desde que eu sou vivo, da década de sessenta em diante, digamos - e que ia à marisqueira dos anjos, se calhar, duas vezes por ano, não pode nunca ser considerada de pobre. é certo que ainda sou gozado pelos meus amigos por nunca deixar comida nos pratos dos restaurantes ou por beijar o pão que cai ao chão, mas isso já são outros trezentos.
uma coisa que aquele bairro conhecia de cor e salteado era saber distinguir os pobres mesmo pobres
não lhes gosto de chamar humildes. bem sei que a língua portuguesa acolhe esta palavra com o mesmo significado de pessoa de uma classe social inferior. contudo, uma vez que muitos deles não eram nada humildes - por não conhecerem as suas próprias limitações - e eram bem arrogantes ou armados aos cucos, tenho francas dificuldades em lhes chamar humildes. fiquemos pelos pobres. porque isso, eram mesmo.
de todos os outros.
o meu avô materno costumava pronunciar, perto do final das refeições, "que os pobres mais necessitados do mundo estejam como eu estou agora". era uma forma de desejar barriga cheia a toda a gente. logo ele que soube na pele o que era passar fome e conheceu a pobreza por dentro e por fora.
quem habitava aquele bairro, sabia muito bem que este ou aquele não tinha direito a pequeno-almoço ou a bolo no dia de anos. já nem chamo para aqui outras necessidades básicas como por exemplo o banho, entenda-se. ainda noutro dia estive a ver uma fotografia da minha primeira classe. éramos aí uns doze, quinze alunos. desses, seguramente sete ou oito, nunca se sentiram numa banheira de água até aí aos quinze ou dezoito anos, sem exagero! água quente então, nem sei a que idade passou ela pelo corpo. muito provavelmente, quando foram treinar ao vitória ou iam aos balneários de chelas.
adiante.
o que eu quero aqui salientar é que ninguém enganava ninguém com a pobreza. havia respeito - salvo parvas excepções - pela condição daquelas pessoas.
é por isso que me custa a evolução do crime, da malandrice, do engano praticado por supostos pobres. tira-me francamente do sério as histórias sobre pessoas que andam a pedir esmola e que depois a utilizam para outro tipo de gastos. fico francamente desiludido e irritado. esse tipo de comportamentos, num bairro tão hermético como a picheleira, era facilmente denunciado e motivo dumas bocas valentes ou dumas chineladas nas trombas.
gozar com quem tira da boca dos filhos para dar aos outros e mesmo assim ser enganado. meus amigos, isso era quase crime de lesa pátria.
por isso, cada vez mais me custa dar esmola. tenho vergonha de a recusar, mas tenho ainda mais medo que seja utilizada para outros fins. é a vida.
o ruizinho decidiu, aí por volta dos quinze ou dezasseis anos, deixar de andar na coboiáda connosco e ser agarrado ao caldo. tudo bem, era com ele. o que não devia era ter-me interpelado numa noite em que se encontrava sentado à porta dos pais - que o tinham posto no olho da rua pela enésima vez - pedindo-me cem paus para uma sandes ou uma sopa. ora, eu que sabia que aquilo seria, seguramente para mais um panfleto ou coisa parecida, disse-lhe para ele ter juízo. o que me tirou do sério foi o facto de ele já nem sequer ter reagido ao que lhe disse. é claro que dez minutos depois, estava novamente junto a ele com dois papo-secos guarnecendo umas costeletas de porco. pelo ar com que devorou aquilo e pelas lágrimas que iam caindo dos olhos, aquele estômago não via outra coisa que não ar, há uns tempos valentes. em vez de ter ficado contente pela ajuda que lhe dei, fiquei antes irritado. irritava-me ver um gajo que, um par de anos antes andava comigo a tentar engatar uma gaja da mira fernandes, estar cheio de mazelas e completamente obliterado para a vida. fui-me habituando com os outros casos - muitos. alguns que foram parar mais cedo que o costume à quinta das tabuletas - que foram sucedendo ali à volta.
o pedro bucherie, escreveu um valente artigo no sábado, sobre uma família com rendimentos mensais de alguns milhares de euros que recorria à ajuda do banco alimentar para satisfazer a sua fome. ao que parece utilizava o dinheiro para outras necessidades. outras prioridades, não é? bem sei que este exemplo não pode ser confundido com o espírito que norteia o banco alimentar. mas mesmo assim, chateia-me profundamente que a ajuda a esta família, este exemplo relatado, pelos vistos, ainda persista.
saí dum bairro em que todos sabíamos, infelizmente, quem eram os pobres e vim viver para uma zona, presumivelmente "chique". puro engano. não digo que haja tanta pobreza. o que há - e mais do que eu supunha - é uma maior hipocrisia. faz-me francamente confusão ver a prioridade destas pessoas. sei do que falo porque tenho bem próximo de mim (família incluída) - não só daqui desta zona onde resido - pessoas que se queixam da crise e que ostentam exemplos contrários a essa mesma crise.
reparem que eu não digo que são possuidores, eu disse que ostentavam. uma coisa é dizerem que não podem comprar porque não têm dinheiro mas depois, às escondidas, usam-no para comer fuá grá. não, o que eu digo é que dizem que não têm, devem a meio mundo, toda a gente sabe, mas não deixam de se passear de éme xis cinco, envergando pul ouvârs com senhores em cima de cavalos e de taco na mão. cabrões!
uma vez o baixinho - um valente cabrão, diga-se de passagem - estava no meio duma ressaca monumental, interpolou-me ali em frente à loja do nove dedos, dizendo que precisava de uns trocos para comprar pó. recusei, e tentei fugir. ele veio atrás de mim a moer-me o juízo e insistindo, pegou-me da carteira, sacou de lá quinhentos paus e disse que me daria protecção para o resto da vida. eu fiquei tão atónito com aquele roubo - ainda estou para saber porque é me deixei levar por um gajo completamente podre sem sequer reagir - que me calei e segui o meu caminho, fodido, obviamente com aquilo. até porque sabia que era mesmo - ele próprio me disse - para mais um panfleto.
esta semana, entrou-me na loja um gajo que tinha tudo menos um ar ameaçador. pediu-me para falar e explicou - numa linguagem perfeitamente imperceptível - que era búlgaro, que não tinha um tusto e que pretendia ir a sintra pois lhe prometeram um emprego para aquelas bandas. o meu instinto primário foi imediatamente recusar - lá está, é o tal medo dos pobres que não o são e apenas aparentam - e, com efeito recusei. insistiu, realmente num péssimo português - eu só entendia: bulgária, sintra, dinero. o resto era tudo corrido a gestos. fazia-me ali falta o iordanov -, pedindo, por favor, apenas dois euros. depois regateou e disse que só precisava de um euro. continuei a recusar. instintivamente ia recusando. ele lá saiu.
e foi pior a emenda que o soneto. pois, por mais que a história não fosse verdadeira - provavelmente era tanga - ter-lhe entregue um mísero euro, tinha-me deixado com a alma mais descansada. a minha vida não se alteraria rigorosamente nada se eu lhe tivesse dado, um, dois ou até dez euros. mas como recusei, fiquei na mesma na dúvida se ele não me queria dar a boca a mais dinheiro ou ao telemóvel - muito habitual aqui na zona - e fiquei por isso com este peso na consciência. peso que poderia ter aliviado com alguns trocos de trazer no bolso.
estúpido!
é isto que me irrita. esta proliferação de histórias de pessoas que se utilizam da pobreza como método para sacar carcanhol para proveito próprio. tudo bem que se faça humor com os pobres. agora o que eu não admito é que se brinque com a pobreza.
estúpido, na mesma!