já não é a primeira vez que fico a pensar na relação entre os malucos e as telefonias.
não me refiro a autistas, a deficientes, a doidos, nada dessas coisas. refiro-me mesmo a malucos. gente do júlio de matos, do miguel bombarda e outros que de lá fugiram ou que para lá nunca foram.
aqui onde moro há uma velhota que não joga com o baralho todo (julgo que não tem os ases, os ternos e, das figuras, falta-lhe as damas) que passa os dias de rádio na mão a ouvir de tudo um pouco. costuma estar à porta do supermercado a lamentar a vida enquanto ouve a antena 1, mas já a apanhei sentada na paragem a ouvir o markl e muitas das vezes fica apenas a ouvir estática. agora que já não tenho idade para dizer em voz alta "ó maluuuuuca", fico com vontade de ir ao supermercado comprar-lhe dois pares de pilhas das pequenas, colocá-las lá no transístor e sintonizar-lhe aquilo, assim pianinho, porque o raio do screrrhjgjghstss faz-me uma impressão dos diabos e altera-me a localização dos órgãos do abdómen, quando ali vou meter o boletim do euro-milhões.
mas isto é agora que sou menino fino e moro na linha. quando tinha mais juízo e era gajo do bairro, o meu contacto, mesmo que de passagem, com estes malucos radiofónicos era maior.
1) o blé, filho do cigano sebastião, andava sempre, mas sempre, com um rádio na mão em altos berros. é famosa a história que ele viveu quando foi ter a aveiro de comboio e o tiveram que ir lá buscar, coitado.
recordo um dia, já nos anos noventa, quando ele entrou no 30 que estava estacionado na zona a aguardar a hora da partida. pagou o seu bilhete, sentou-se junto do motorista e, uns segundo depois, exigiu-lhe que ele baixasse o som do rádio:
- queres que baixe o rádio, é?
- quedu!!
- está bom?
- mais.
- assim?
- mais um bocado.
- ...
- está bom?
deve ter sido daqueles dias em que, além de se ter esquecido do seu rádio, estava seguramente doente e cheio de dores de cabeça.
paciência.
2) o chalana é das figuras mais carismáticas do defunto casal do pinto. além de lhe faltarem umas peças da mona ainda por cima tem ali um problema físico que o obriga a arrastar uma perna sempre que caminha. nenhuma dessas deficiências o impediu, gerações atrás de gerações, de servir de "segurança" ou amparo para as crianças que iam para a escola 28/40. quem diz 28/40 diz mesmo a secundária das olaias ou até a cesário verde. desse lá por onde desse, onde houvesse crianças lá estava o bom do chalana, poupa elvisiana, olho claro e olhar distante, com um olho na carícia e outro no oculista - isto do ponto de vista de quem está estacionado no zé dos frangos -, sempre a defender a criançada de algum eventual perigo.
adivinhem? sim, um dos seus logótipos era um transístor a pilhas, empunhado no topo do braço erguido, sintonizado em selecções musicais de alto gabarito e sempre com o volume em altos berros. por outro lado, compensava este lado mais tacanho do uso público da telefonia, usando um blaser, clássico, com duas rachas atrás.
uma maravilha.
3) o luís maluco era um gajo que não fazia mal a ninguém. tinha aquele ar de mitra sempre de cabelo curto que lhe dava um ar de vilão ubzeque dum filme do 007. a sua loucura era não só visível como também audível a largos metros de distância, pois tinha por hábito andar quase sempre em velocidade muito acelerada, com as duas mãos presas num fictício guiador ao mesmo tempo que da sua boca saía, não só muita baba que depois secava e se alojava em redor dos lábios, mas também uma imitação perfeita duma zünder und apparatebaugesellschaft - zündapp para os amigos - que entoava em longos raides desde o mercado de arroios até às redondezas da nossa capitão roby.
certo dia, vi-o atravessar a morais soares sem parar, vindo largado da heróis de quionga e seguindo pela edite cavel, parando bruscamente naquela casa de brinquedos (sócio, como é que se chamava essa loja? trenzinho? loja do pai natal? era assim uma coisa que já não me recordo. ajuda-me lá.) a fim de observar deleitado a montra.
- então, luís, vais comprar uma pista de carros?
- não, não preciso. estava a ver se havia aqui pilhas para este meu rádio.
- já estão gastas?
- não, mas posso precisar quando estas acabarem.
(e o maluco é ele, não é?)
ligou o rádio, encostou-o à orelha e seguiu pela carvalho araújo adiante, guiando apenas com uma mão no fictício guiador maaaaaaaaaaaa, na, na, na, nahaaaahhhhhhh.....
3) o calota tinha aquele ar de bandolero mexicano, com as suas botas texanas de cano alto, blusão de veludo cotlê e um cinto de couro com uma fivelona enoooorme, metálica, em forma de cabeça de leão.
era um daqueles ciganos, digamos, mais pacíficos. sempre calado, olhar distante, um metro e sessenta e quatro de serenidade.
não posso dizer que era, digamos, maluco como o blé ou o chalana. tinha contudo as suas doideiras.
incluo-o aqui porque também o cheguei a ver com o seu auricular ligado a uma telefonia.
certo dia correu lá no bairro que o calota (é calita ou é calota, pessoal? deu-me agora um flash e confesso que estou com a travadinha. vão ali aos comentários validar-me a resposta, sim?) tinha feito das suas:
- o calota? mas o calota não faz mal a ninguém.
pois, isso é o que se diz. porém, daquela vez ele decidiu alargar os seus horizontes e meteu-se a descobrir outros locais: rua larga (a rotunda das olaias ainda era um mero projecto), barão de sabrosa, azinhaga da fonte do louro.... areeiro, gago coutinho... e, eh pá, tu queres ver que.... está ali uma janela aberta.
e estava mesmo. numa daquelas vivendas que existem na gago coutinho - que em tempos foram propriedade de famílias vintage, antes das crises dos finais do milénio as terem destinado a sedes de empresas - o bom do calota viu uma janela aberta. ora deixa cá ver o que é que acontece se eu saltar o a vedação do jardim e for ali espreitar à janela? e o calota lá foi. e espreitou. e colocou o seu pé direito sobre a cercadura de lioz, deu um impulso e foi um balanço tão grande que só terminou quando, duas horas mais tarde, a dona da mansão chegou a casa e viu o pobre do calota enfiado a dormir dentro do vale dos lençóis.
e num ápice, está o calota expulso de casa da grã-fina. julgo que nem a polícia chegou a ser alertada porque o pobre cigano apenas usufruiu das comodidades da realeza sem ter verificado existir ali oportunidades de alargar o seu património - quem sabe uma nova fivela para o seu exuberante cinto de couro texano -.
e calota regressa à barraca da sua picheleira natal.
à noite, na porta da cervejaria do príncipe careca:
- calota desliga lá a telefonia e conta-nos. entraste para uma casa duns ricos lá na avenida do aeroporto?
- a janela estava aberta...
- e enfiaste-te na cama lá dos senhores?
- eu nunca tinha estado numa cama assim... ai, nunca dormi tão bem....
acto prontamente remido perante tamanha pública contrição.
4) o antónio tinha o mérito de ser portador do maior número de alcunhas que a picheleira viu coroar: olho de peixe, olho de peixe-espada, olho de goraz, simplesmente olho, por aí fora.
o substantivo olho presente nestas alcunhas era elemento mandatório. isto porque o seu olho direito - esquerdo para quem estava de frente - estava... vamos lá a ver.. estava, assim meio caminho entre o acataratado e o vazado, digamos.
o olho, o mais famoso fumador de kentuckys que eu jamais conheci, era, talvez, ainda mais baixo que o calota ali da história anterior. sempre frenético no seu andar, assumiu por diversas vezes dois dos mais difíceis cargos que o clube do bairro podia disponibilizar: uma era ser apanha-bolas e a outra era, digamos, uma tarefa mais complicada.
não julguem vós que ser apanha-bolas era algo que reduzia as capacidades dum ser humano. reparem, o campo de jogos do vitória clube de lisboa, está (ai que ia dizendo estava) localizado, digamos, no fim do mundo. ou seja, está nos limites, não só geográficos, como também topográficos da picheleira - a picheleira é nossa, pessoal!
do gradeamento do campo em diante, havia uma sucessão descendente de curvas de nível que só terminavam na estrada de chelas. assim, uma bola bombeada por um atacante com a pontaria menos calibrada, só terminava, praticamente, na freguesia de xabregas. por isso, quando a bola passava as grades altas localizadas atrás da baliza sul ou do peão, logo se ouvia o grito de alerta «ó oooooolho, vai buscar a boooooooola».
e era ver metro e meio de gente, cabelo negro, habilidosamente esculpido com brilhantina, a serpentear desde o bufete, passando pelas traseiras dos balneários, atravessando o gradeamente ali pelo buraco perto do estendal dos equipamentos, disputando a corrida com outros petizes que tentavam socorrer a bola da catchumbo, das investidas dos moradores dos embrechados que por ali rondariam, na esperança de ganharem aquele troféu.
a outra tarefa que o olho desempenhava com brio e dedicação era ser uma espécie de personal security, afastando para as bancadas, as crianças que nos intervalos dos jogos invadiam o terreno pelado para se recrearem juntamente com os suplentes que ali ficavam a dar uns toques na bola «ó olho, manda o caralho dos putos daí para foooooooora!»
muitas, muitas vezes, bateu à porta da loja dos meus pais, com a sua telefonia telstar na mão sintonizada no programa do sala (terá sido o calota que lha deu?), solicitando à minha mãe:
- cosa-me aqui este botão, ó faxavor, cose-me?
- coso sim, entra lá que eu coso-te.
- obrigadinho, dona raquel.
nota: não se admirem se apareecerem por aí uns comments com correcção de nomes, acontecimentos, locais e afins. sou péssimo nestas coisas. o que eu sei é que malucos e telefonias sempre foram - e são - casamentos perfeitos.