- ahhhhhhh, andaste no rainha?
- sim, andei.
- e gostaste?
- eh pá, adorei!
de que é que afinal nós gostámos quando afirmamos com tanta convicção que adorámos andar no rainha? eu julgo que noventa por cento das respostas são ditas, tendo como ideia principal, os colegas. é natural, não é?
então, se nos perguntam se a escola foi boa, não nos vamos pôr a pensar na qualidade das carteiras, dos quadros, do giz, do cesto de basquetebol. nada disso. o que nos vem à cabeça são mesmo os colegas que nós tivemos: as brincadeiras, as cumplicidades, os amores, os desgostos de amor, as jantaradas com eles, as noitadas a estudar, as matinés no quarteto, as jogatanas de futebol nos relvados da estados unidos, etc.
e depois recordamos os cafés. havia o grupo da suprema, os armados aos cucos que iam para o vavá, os que faziam casa no luanda e os que, como eu, tinham uma cadeirinha com o seu nome na sul-américa. penso que tudo girava à volta destas quatro casas. era para lá que fugíamos quando tínhamos os nossos furos ou faltava este ou aquele professor e nos lembrávamos que havia coisas mais giras para fazer do que jogar à bola.
há também outro elemento preponderante quando avaliamos se gostámos ou não da nossa escola. eu julgo que ter andado – e adorado – no rainha durante os anos oitenta é outra loiça. principalmente porque foram os “meus” anos oitenta. porque foi precisamente com pessoas que comigo lá andaram que eu ouvi pela primeira vez músicas tão díspares como o love will tear us apart, o easy lover, o comanchero (não gozem) ou o tight connection to my heart.
hoje, contudo, não quero falar sobre os meus colegas, sobre os meus cafés, sobre os meus jogos de futebol. não, hoje quero ser crescidinho (por mais difícil que isso seja) e falar sobre os professores que tive no meu rainha. e, de entre os mais de, sei lá, 60, 70 professores, há uma que me vem logo à memória. estou a falar da professora maria de lurdes guisado.
hoje este texto é direitinho para ela.
tive a sorte de a conhecer no meu sétimo ano. inusitadamente, quis o destino e a sorte que fosse minha professora de português durante mais quatro anos.
era uma professora à moda antiga. eu julgo que é a primeira ideia que nos vem à cabeça: uma professora à moda antiga. no entanto, é uma ideia que não lhe faz inteira justiça. simplesmente porque julgo que não houve no antigamente, uma professora como ela.
a primeira coisa que ela nos disse, a nós, reparem, meninos e meninas com 12 anos foi:
- boa tarde, o meu nome é maria de lurdes guisado, sou a vossa professora de português. dizem que é bom estar-se de bem com deus e com o diabo. pois, meus caros, eu sou o diabo.
e pronto, como um árbitro de futebol que quer segurar um jogo mostrando um cartão vermelho logo aos dois minutos de jogo, também ela segurou aquela turma e aquelas pessoas para a vida.
e afinal o tal diabo que ela tanto apregoava ser, não era mais do que uma pessoa que retribuía tudo aquilo que exigia. que exigia um respeito infinito mas que entregava muito mais que isso.
e eu ando aqui de volta deste texto, querendo fazer-lhe uma bonita homenagem e tenho a certeza absoluta que não estou a conseguir dizer tudo o que esta mulher merece. além de que é escrito num português que ela, certamente, logo diria não ter sido o que me ensinou.
por isso, e porque depois me alongo, me espraio e já ninguém me agarra, vamos lá pôr isto esquematizado:
- as suas aulas
nas suas aulas ninguém se portava mal – e olhem que estamos a falar duma turma que, por exemplo, num só ano teve 5 (cinco!) conselhos disciplinares, com algumas expulsões à mistura. conselhos esses onde ela nos defendia até ao tutano com frases tão simples como: “nas minhas aulas ninguém me falta ao respeito, ninguém se porta mal. têm a certeza que estão a falar das mesmas pessoas?” –, ninguém se atrevia a copiar. no início da aula as meninas entravam primeiro que os rapazes porque os homens tinham de ser cavalheiros. se algum outro professor ou elemento do conselho directivo entrava na aula, levantávamo-nos de imediato como sinal de respeito. ah e ninguém comia pastilha.
aquelas aulas eram quase reuniões maçónicas. o que se passava lá dentro não transpirava para fora. se um aluno calhasse ser repreendido, seria, é certo, sempre em voz alta mas nunca fora de portas. que me recorde ou que eu saiba, nunca se queixou - ou comentou - a qualquer outro professor das coisas menos boas que lá aconteciam. para fora, as suas turmas eram sempre as melhores do mundo.
era incapaz de esquecer o nome dum aluno. guardava as folhas de aluno de todos os seus anos escolares. e tinha uma memória fantástica para arquivar naquela cabeça todos os mais ínfimos pormenores relacionados connosco.
os testes eram enormes. para colmatar isso, entrávamos no início do intervalo anterior ao teste e só saíamos no final do intervalo posterior. e acreditem, nunca ninguém conseguia escrever tudo o que pretendia.
de tempos a tempos havia sabatina de verbos:
- voluntários, voluntários, voluntários, quem quer ser voluntário para uma sabatina de verbos?
e lá íamos respondendo às suas provocações:
- então, meu caro, diga-me lá: primeira segunda ou terceira conjugação?
- pode ser segunda.
- comer. agrada-lhe?
- sim.
- pretérito-mais-que-perfeito do indicativo, podemos começar?
- eu comera, tu comeras, ele comera…..
- livros
mesmo que houvesse pessoas que não gostassem de ler, tinham de se aguentar à bronca. havia um livro que era por si escolhido e que era lido em casa durante uns dois meses. mas uma leitura crítica, nada de coisas assim ao de leve. na, nada disso. era tudo com anotações nas margens, com grandes estudos sobre as personagens, os locais, as descrições, etc. depois, havia um dia, em que íamos voluntariamente ao estrado, pegávamos num papelinho à sorte contendo meia dúzia de perguntas, e respondíamos às mesmas como se estivéssemos num concurso. e foi assim que eu li e adorei: o cavaleiro da dinamarca, o kurika, a morgadinha dos canaviais, a cidade e as serras, o bobo, o inevitável os maias, os bichos e claro, os lusíadas.
- cultura geral
era incapaz de passar por um feriado, uma efeméride qualquer, sem nos contar uma história sobre esse dia. quer fosse o são martinho, quer fosse o carnaval
e as incontáveis histórias relacionadas com as suas duas tuberculoses: “não se esqueçam que quando andam a mandar ovos uns aos outros, há tuberculosos que necessitam de comer pelo menos um por dia”!
quer fosse o dia de reis. com uma formação e uma vivência vincadamente católicas, estava como peixe na água a falar sobre estas histórias que nós ouvíamos duma forma sempre atenta.
não falava dum escritor sem contar uma curiosidade sobre o mesmo. não falava do eça sem contar que em paris foi a correr até ao nº 202 (ou será 222, oh diabo que já não me recordo bem) dos campos elísios para ver se existia a casa do jacinto de a cidade e as serras. não havia uma história que fosse dita em vão, não havia um comentário que viesse a despropósito. ali tudo era pensado com uma exactidão cirúrgica.
- teatralidade
não há um único aluno dessa minha turma que não se recorde de como ela era muito gestual na aplicação dos seus dotes pedagógicos. aliás o seu maior trunfo, o que mais a distingue de todos os outros professores que eu tive (e perdoem-me alguma injustiça) é o facto de se lembrar que estava ali para ensinar. e este “ensinar” é algo que está cada vez mais esquecido. a última coisa que eu me lembro de ela ter feito é de ter debitado matéria.
certo dia, estava ela a ensinar o segundo canto dos lusíadas (que eram lidos em voz alta e explicados tintim-por-tintim), por alturas em que vasco da gama é impedido por vénus e as nereides de entrar no porto de mombaça, escapando à traição do piloto mouro. então ela, com aquela voz já rouca e coberta de emoção diz-nos:
- a vénus, reparem, a vénus e as nereides colocaram o seu peito de encontro às naus lusas.
e ao mesmo tempo que dizia isto, batia com a mão na sua bata branca por altura do peito, encostando-o de seguida à porta da sala, fazendo uma força tremenda contra ela.
- assim, assim, estão a ver? assim, assim, com força!
foi pois nesse momento que uma empregada tentou entrar na sala para entregar uns pedaços de giz que tinham sido gentilmente pedidos pela professora. e a empregada rodava a chave e forçava a porta qual uma nau, e a maria de lurdes empurrava de volta qual nereide na barra de mombaça. e ali ficaram, dois, três segundos, num abre e fecha até perceberem que não estavam num palco teatral. risada geral.
outras histórias recorrentes focavam a sua vivência em peniche, sua terra natal. as histórias dos pescadores.
as tormentas que eram as viagens às berlengas:
- então diga-me lá para que servem estes baldinhos aqui debaixo dos nossos assentos?
- ó maria de lurdes, quando estiveres em alto mar, logo verás.
e fazendo loopings com os olhos, imitando o ar de enjoo, olhava depois para nós e dizia
- com o tamanho das ondas, descobríamos logo em minutos para que serviam os baldinhos.
e o gil vicente? ai que saudades daquelas aulas onde podíamos dizer bem alto e em frente duma senhora de idade, todo aquele asneiredo que só arriscávamos pronunciar entre nós, colegas.
- ó amadeu, não se acanhe, nem se envergonhe. é precisamente nesta ocasião que você deve dizer isso sem gaguejar. ora o sapateiro dizia o quê, senhor amaral:
- ah! nom praza ò cordovão, nem à, à, à, ai professora que eu não consigo dizer.
- quer que eu diga?
- eu prefiro.
- nem à puta da badana
se é esta boa traquitana
em que se vê joanteantão!
- expressões proibidas ou corrigidas – coisas que aprendemos para a vida
“- ó professora (ali não havia lugar para storas), desculpe lá. posso fazer uma pergunta?”
“- desculpe lá? onde? aqui? aqui assim? ali? onde quer que eu o desculpe?”
era este o diálogo recorrente sempre que alguém dizia, “desculpe lá”.
“hall de entrada”
ensinou-nos que não há halls que não sejam de entrada.
“constatar”
odiava esta palavra. dizia que sempre que possível, devíamos evitá-la. primeiro porque é um francesismo e depois porque existe verificar ou observar que são bem mais bonitas.
sei lá, muitas, muitas outras histórias que ficam por contar. neste dia que o meu rainha comemora sessenta anos, a minha memória tem de ser dirigida à pessoa que eu ligo imediatamente aos anos que lá passei. esta extraordinária professora merece sem dúvida esta homenagem que peca, obviamente, por defeito.
julgo, no entanto, que são poucos os seus alunos - mesmo os que nunca receberam uma nota positiva dela ou que se tenham sentido injustiçados por esta ou aquela eventual decisão, que a não considerem como tendo sido: a sua melhor professora de sempre.
acima disso, acima dum superlativo e raro grau de pedagogia, reconheço nela uma das mais incríveis mulheres que eu já conheci.
obrigado, senhora dona maria de lurdes, por ter sido minha professora.